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Grande Estratégia e Política de Segurança dos EUA

O processo de todo imprevisto e sem igual na história que leva à decomposição do bloco soviético subverte as coordenadas políticas do mundo e torna subitamente obsoleta boa parte da agenda que vinha concentrando há muito os esforços despendidos pelos especialistas da área de segurança internacional. Com o fim do conflito entre os blocos, constituídos a partir de 1945, o espectro da guerra atômica parecia finalmente afastado. E, com a aparente predominância do consenso em torno de modelos de sociedade (economia de mercado e democracia liberal) e de valores fundamentais (direitos humanos), o mundo parecia estar ingressando em uma era radiante de paz e prosperidade.

A Guerra do Golfo de 1991 e a eclosão quase simultânea dos conflitos étnicos na Europa Central, com os espetáculos de violência brutal a que deram lugar, tornaram rapidamente vetustas aquelas ideias. Não que elas tivessem se demonstrado inteiramente infundadas – apesar de tudo, a guerra entre as grandes potências continuava sendo uma hipótese inteiramente descartada, e a matriz liberal-democrática continuava em vigor como modelo sem rival. O âmbito de sua validade é que fora redefinido. Mais do que pensar em termos de uma marcha unida em direção àquele estado de coisas, visto por várias correntes como sumamente bom, caberia reconhecer a persistência prolongada de diferenciações profundas no campo das relações internacionais. Essa a idéia comunicada pela metáfora dos dois mundos: aquele do bem-estar, do consenso liberal e das relações pacíficas (o centro capitalista), e este outro, dilacerado em conflitos crônicos e guerras pouco convencionais (o antigo Terceiro Mundo).

Não é difícil entender o impacto no debate sobre o tema da segurança internacional. O mundo que saía da Guerra Fria não estava a salvo de ameaças. Algumas eram antigas, como aquelas envolvidas na proliferação nuclear. Muitas, porém, assumiam um caráter pouco tradicional. Era esse o caso do recurso à violência organizada nas disputas pelo poder em regiões da periferia, que ganhava um significado novo na medida em que não estava mais sobre determinado pela lógica do conflitos tendem a se manifestar sob novas configurações, fragmentando-se e ganhando frequentemente conotações étnicas e/ou raciais, com seus corolários sombrios: atrocidades sistemáticas contra populações civis, “limpeza étnica”, genocídios, movimentação inter-fronteiras de massas humanas para escapar a esse destino (o problema dos refugiados). E a pôr em questão muitas das categorias com base nas quais o tema da paz foi secularmente pensado – a distinção entre violência privada e violência pública, guerra civil e guerra inter-estatal.

Ao contrário da guerra clássica, cuja lógica interna empurra os contendores para enfrentamento, essas novas formas de guerra são fragmentadas, dispersas; a escaramuça é seu traço distintivo, a ofensiva estratégica nelas não tem lugar. Neste tipo de guerra, a racionalidade derivada da primazia do político – traduzida na pergunta sobre o tipo de paz que se busca alcançar – corre o risco de ser substituída por outro tipo de determinação. A violência pode vir a se converter em forma e meio de vida; os combatentes, encurralados pelas circunstâncias, lutam para assegurar sua continuidade. Os recursos que mobilizam para esse fim decorrem de sua própria atividade: sem o amparo de um poder político dotado de capacidade tributária, em grande medida, os elementos de que necessitam para sua reprodução são alcançados através do confisco e do saque – reside aí uma das conexões que ligam, com frequência, os grupos armados envolvidos nesse tipo de conflitos do narcotráfico.

Crime transnacional, lavagem de dinheiro, paraísos fiscais – por essa cadeia de relações esses conflitos se vinculam, ainda que indiretamente, aos processos que vêm transformando as bases da economia internacional. Mas não apenas por elas: como esses conflitos expressam em sua origem rivalidades políticas, étnicas e/ou religiosas, os grupos neles envolvidos tendem a se beneficiar de apoio externo, que se manifesta sob a forma de defesa de sua imagem junto à opinião pública, em todos os quadrantes do mundo, e do financiamento às suas respectivas “causas” – aqui também o papel dos meios de comunicação eletrônicos e dos circuitos financeiros liberalizados é fundamental. Ele adquire máxima relevância quando deslocamos o foco da análise para outra forma de violência organizada de imenso impacto no mundo do pós-Guerra Fria: o terrorismo fundamentalista transnacional. Constatamos ainda, em ambos os casos, outro efeito perverso do aspecto tecnológico daquele processo: as tendências cruzadas de miniaturização e barateamentos bélicos e de sua crescente letalidade.

Em associação com outros temas, que passavam a ser discutidos também sob esse prisma – o problema do desenvolvimento econômico e o da preservação do meio ambiente – a consideração desses conflitos recolocava em outros termos a problemática da segurança internacional. Mudado estava o foco, que não se concentrava mais nas relações entre os Estados, abrindo-se para abarcar um leque de outros temas – as “novas ameaças”. Em nível mais profundo, via-se alterada, igualmente, a definição dos “referentes da segurança”, i. é, os sujeitos cuja proteção devia ser assegurada. Não se tratava mais de garantir a segurança do Estado – concebido este como expressão da coletividade politicamente organizada e fiador da integridade física e moral de seus integrantes –, mas de proteger essas coletividades mesmas, e os indivíduos que as compõem, de ameaças provenientes de variegadas fontes, incluso de seus respectivos Estados.

Dois aspectos adicionais dessa mudança de perspectiva merecem destaque. O primeiro diz respeito à dimensão militar: ela continua presente (para repelir eventuais agressões de Estados chamados delinquentes e para pôr fim a violações flagrantes dos direitos humanos em situações de conflito: o tema das intervenções humanitárias), mas perde sua antiga centralidade. O segundo concerne à natureza das relações entre os atores nesse universo. A concepção clássica de segurança é realista: os Estados interagem estrategicamente, constituindo-se, uns para os outros, em fontes potenciais de ameaça. No novo enfoque, embora o conflito interestatal continue sendo levado em conta, naturalmente, a ênfase passa a recair na cooperação necessária à resolução de problemas comuns. No lugar de “defesa nacional”, “segurança cooperativa”.

Observável no âmbito dos estudos acadêmicos, bem como no processo de formulação de políticas, o deslocamento representado pela difusão de ideias a respeito da “segurança cooperativa” não se operou sem resistências, nem se realizou de forma completa. Embora na defensiva, os “tradicionalistas” continuavam em suas trincheiras disparando argumento de segurança, que acabaria por torná-lo difuso e imprestável. E se a nova abordagem passava a dar o tom em documentos de política de inúmeros países, no desenho da estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos os novos temas continuavam claramente subordinados a preocupações e objetivos de natureza tradicional – adequação permanente do aparelho militar para a defesa dos interesses nacionais contra ameaças presentes e futuras de origem externa –, o que se traduzia na importância dada à capacidade de travar guerras simultâneas em dois teatros distantes, e na destinação de recursos vultosos para garantir a prontidão dos seus efetivos, renovar os sistemas de armamentos e custear atividades de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia bélica. Ela era indispensável para permitir a efetuação de operações militares com número de baixas tendente a zero e para assegurar a superioridade esmagadora dos Estados Unidos sobre qualquer aliança entre possíveis rivais.

Em grande medida, é em torno dessa exigência – e de tudo nela envolvido – que vem se travando há muitos anos, entre profissionais e acadêmicos da área, o debate a respeito da natureza do sistema internacional. Esse debate, que foi fortemente impactado pelos atentados de 11 de setembro e pelas respostas que suscitou (a doutrina da “guerra contra o terror”), continua tendo em seu centro a interrogação a respeito do papel dos Estados Unidos neste sistema.

O objetivo que unifica as 3 linhas inseridas nesta subárea temática é o de estudar a maneira como os formuladores da política externa norte-americana respondem, teórica e praticamente, a esse conjunto de questões, e os desafios renovados que eles passam a confrontar em decorrência das orientações – mais ou menos dissonantes – adotadas pelas grandes potências.

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